Garota em pedaços - Kathleen Glasgow
Uma história para se envolver e emocionar. Uma leitura densa, um misto de emoções, uma montanha-russa. A leitura tem o poder de nos fazer viajar e conhecer lugares e culturas, desperta a nossa criatividade e imaginação. Mas a leitura também nos confronta e nos coloca diante de situações jamais imaginadas.
"Garota em pedaços" é uma leitura para nos arrebatar. Durante a leitura senti um aperto, fui confrontada em todas as paginas.
O livro é dividido em três partes. A primeira parte é titulado por “que história você tem para contar, raio de luar?
“Como uma órfã, cheguei aqui sem roupas. Como uma órfã, ruim embrulhada em um lençol e deixada no gramado do Regions Hospital ma geada e na neve gelada, com sangue escorrendo pelo lençol florido.”
Temos a imagem de uma menina que foi abandonada e escreveu um diário, mas avançamos e começamos a perceber que o buraco é bem mais embaixo. Depois de tanto sofrer entendemos que a personagem principal, cujo nome não é Sue Silenciosa - como é chamada por uma das internas, encontrou o silêncio como refúgio e se mantém calada no grupo onde foi acolhida.
“Eu corte todas as minhas palavras fora. Meu coração estava cheio demais delas.”
Estando há dias no Creeley Center, no calor de Minnesota, a personagem principal, que mais adiante se apresenta com Charlotte Davis, ou simplesmente Charlie, tem memórias/delírios e medo de alguém.
“Só tem uma pessoa de quem tenho medo, e ele está longe, do outro lado do rio, e não pode me fazer mal aqui.
Pelo menos eu acho que ele não pode me fazer mal.”
Narrado em primeira pessoa, aos poucos vamos conhecendo a história de Charlie, uma menina de 17 anos que tem feridas demais para suportar. Perdeu o pai ainda muito cedo e por não ter boa relação com a mãe e é expulsa de casa. Tem uma amiga especial, Ellis, que a acolhe em casa. Mas num certo momento, os pais de Ellis encontram as drogas do namorado e a culpa fica em Charlie, que é expulsa da casa da amiga.
Charlie passa a viver na rua e é a partir daí que suas dores aumentam a intensidade. Sem ter ninguém por perto, a menina passa a viver com dois garotos de rua e, em certo momento, encontram um lugar “seguro” para se abrigarem, a Seed House, e a menina se vê obrigada a pagar sua estadia com o próprio corpo. Aí foi a gota d’água que entornou o copo.
“Eu me corto porque não consigo lidar com as coisas. É simples assim. O mundo se torna um oceano, o oceano cai em cima de mim, o som da água é ensurdecedor, a água afoga meu coração, meu pânico fica do tamanho do mundo. Preciso de libertação, preciso me machucar mais do que o mundo pode me machucar. Só assim posso me reconfortar.”
O início para leitura parece um quebra-cabeça e aos poucos outros personagens vão surgindo e nos dando mais entendimento do enredo. São relatos curtos. Isso faz com que a leitura seja bem íntima, parece que estamos sentados de frente para Charlie enquanto ela junta os pedaços do quebra-cabeça da sua história.
A leitura fica intensa a medida que as peças do quebra-cabeça vão se encaixando.
Acompanhamos a vida de Charlie na segunda parte, “eu poderia ser uma garota, uma garota de verdade”, e sentimos a mudança brusca na vida da menina. Ela acaba saindo do hospital e troca o frio de Minnesota pelo calor de Tucson, no Arizona. Com essa mudança, temos esperança de que as coisas vão melhorar. Mas tomamos um banho de água fria e é aí que nossas emoções são elevadas. Antes, só vimos relatos de memórias vagas. Agora, começamos a presenciar situações reais e bem detalhadas.
É uma escrita delicada, sensível e cuidadosa. Mesmo com um tema denso, há cuidado em cada palavra.
“Pego meu kit do amor e o preparo; acomodo todos os rolos de gaze, os cremes, o esparadrapo, o vidro enrolado no linho, sempre lado a lado, até tudo se encaixar perfeitamente.
Isso é tudo que preciso agora. Só preciso saber que meu kit existe e está pronto. Não quero me cortar. Não mesmo. Desta vez, quero que seja muito melhor. Mas preciso disso. De alguma maneira, isso faz com que eu me sinta mais segura, apesar de saber que é errado.”
Tudo estava indo bem; ela consegue um emprego em um café, um lugar para morar e, aparentemente, vai dar seguimento em sua vida sem conflitos. Mas ela conhece Riley. Logo ela se diz apaixonada e acredita que ele não liga para suas cicatrizes, mas logo ela está presa em um relacionamento perturbado.
Em determinado momento, Blue, que também estava internada em Creeley Center aparece para morar junto com Charlie e aí os problemas surgem constantemente e vão se agravando. Charlie não sabe dizer não.
Aqui eu percebo a dependência emocional de Charlie. Ela aceita os pedidos absurdos de Riley e acaba sendo cúmplice de suas loucuras, não sabe colocar limites na amizade com Blue e, consequentemente, acaba se colocando em situações perigosas junto com os dois. Esses momentos conturbados levam Charlie ao chão e ela se vê diante da garota em pedaços o tempo todo.
“Seguir em frente. Continuar a batalha. Estou ficando cansada de todo mundo pensar que é tão fácil viver. Não é. Nem um pouco.”
A última parte do livro, “e agora”, continua com a luta de Charlie contra seus pesadelos, medos e dores. Mas acima de tudo, vimos o desejo de Charlie de superar seus fracassos e encarar suas cicatrizes.
Incômodo, tristeza, ansiedade, aflição, alegria… são algumas das emoções que senti junto com Charlie. O desenvolvimento da história é envolvente e os personagens são bem construídos. Embora seja um tema pesado, a autora nos conduz de forma humana, nos coloca dentro da história.
Kathleen Glasgow escreve de forma brilhante; dá para sentir a dor da menina Charlotte. Ela escreve para quem pratica a automutilação; ela tem cicatrizes.
“Anos atrás, eu não queria escrever a história das minhas cicatrizes, nem sobre como é ser uma garota com cicatrizes, porque já é difícil o suficiente ser apenas uma garota no mundo. Experimente só ser mais uma garota com cicatrizes na pele, neste mundo”.
Isso me deixou ainda mais emocionada e percebi que a intensidade com que ela escreve é real; fiquei olhando a página e parecia que as palavras se dissolviam e as letras ficavam fora do lugar.
"Garota em pedaços" não se trata só de mais um romance. É um livro e tanto, uma leitura necessária. Uma história intensa, dura e crua que mostra as fraquezas de alguém com problemas, o fracasso, as recaídas, a culpa. Mas também fala sobre amizade, ajuda, superação, paciência e recomeços.
Precisamos falar sobre saúde mental, depressão, automutilação, agressão física e mental. A sociedade está doente, tem muita gente sorrindo por fora e chorando por dentro. É tão duro pensar nisso, mas há muitas pessoas sofrendo e precisando de ajuda. Talvez estejam mesmo gritando por socorro e nós não estamos vendo.
“Não faz sempre sol e nem sempre é um mar de rosas, e às vezes a escuridão fica bem sombria, mas estamos cercados de pessoas capazes de entender e de nos provocar gargalhadas suficientes para aliviar as pontas afiadas e nos ajudar a chegar ao dia seguinte.”
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Kathleen Glasgow é uma autora nascida na Pennsylvania, Estados Unidos, e que debuta no mercado editorial americano com o romance Garota em Pedaços. Fã de J. D. Salinger, é muito ativa nas redes sociais – principalmente no Twitter –, meio que usa para manter uma forte conexão com seus jovens leitores. Mãe de duas crianças, ela vive em Tucson, no estado americano do Arizona.